Expectador ou Espectador
Thaís Darzé
As duas palavras existem na língua portuguesa, porém com significados diferentes. Espectador com “s” se refere a uma pessoa que assiste passivamente aos acontecimentos. Já expectador com “x” indica alguém que está na expectativa do acontecimento de algo.
Como uma recorrente no trabalho de Fábio Magalhães antagonismos e zonas de tensão são presentes a todo instante. Creio que a indagação do título não será respondida, mas também a obra de Fábio não se propõe a respostas, ela está muito mais ligada a novos questionamentos e inquietações. Permanece a provocação e caberá ao público se colocar como espectador ou expectador diante de cada uma das obras.
A sua obra é baseada em duas tríades.
Do ponto de vista técnico, o primeiro tripé é ficção, fotografia e pintura. A ficção é a simulação do ato que em seguida é registrado através da fotografia, esta a partir daí sendo utilizada como referência, apenas um meio para chegar à pintura. Uma vez a pintura executada, tudo para trás é descartado, e a pintura sozinha compila todos os processos. A segunda tríade é conceitual, que perpassa pelo eu, pelo corpo e pelo ser. Ao utilizar a própria imagem ou mesmo as vísceras em uma obra, essas representações do eu, perpassam e utilizam corpo como instrumento para atingir camadas obscuras do Ser.
Nossos processos mentais acontecem de forma encadeada, ou seja, nenhum pensamento, lembrança ou sentimento acontece de forma isolada. Existem elos ocultos que ligam os processos mentais a outros que ocorreram antes. Fábio busca acessar esses elos. Em suas palavras “existe a clareira da razão da consciência humana. Eu dou as costas para tudo isso e começo a tatear na escuridão. Tudo que eu encontro no meio do caminho e vou apalpando é fruto de trabalho”.
Fábio desenvolve um vocabulário imagético próprio. Através de devaneios as mensagens são cifradas e a representação da realidade por meio de símbolos compõe seu repertório. Se apropriando de “sonhos lúcidos”, o vocabulário do artista nos leva de volta a vida comum, em vez de nos libertar dela.
Em muitas conversas com o artista, o escutei repetidas vezes dizer que a sua obra era repleta de contrapontos, e que em diversos momentos de seu processo criativo ele mesmo se questionava: “Será que estou me contradizendo?”. Assim como a dicotomia entre vida onírica e vida de vigília parece de fato insolúvel, Fábio permite que sua obra se posicione nesse lugar de contradição latente, que nos liberta da realidade e nos permite um salto de consciência.
Nessa mostra “Espectador da Vida” o artista manufatura cuidadosamente uma série de objetos que reproduzem miniaturas de cômodos, ambientes ou espaços internos residenciais atemporais. Através de mensagens simbólicas, cifradas, subliminares, as emoções nesses ambientes são reveladas e vem à tona como avalanches. É justamente nesse momento de revelação, quando algo se torna visível, que o Ser no seu mais íntimo perde totalmente o controle. Magalhães tenta congelar no tempo através de seus objetos, uma realidade hermeticamente fechada e separada da vida real, criando assim um precipício intransponível.
Ao contrário de suas pinturas em grande escala, que obriga o público a se distanciar para contemplá-las, com a necessidade de sair de cena para observar a arena, nessa série de objetos, o convite ao espectador é de aproximação. As miniaturas são um chamado para perceber cada detalhe, e essa série possui marcas espaciais definidas, apesar da ausência de vestígios de temporalidade ainda permanecendo.
Em “A Poeira Amarela Que Pairou Sobre Àquelas Horas” nos confrontamos com verdades invasivas, que chegam ao ambiente e deflagram realidades tão duras que desbotam a cor por onde passa. A nossa porção humana representada pelas vísceras resiste em se encontrar com esses duros fatos e escolhe permanecer na porção intacta do ambiente.
O artista, ao mesmo tempo em que reduz o Ser a meros vestígios de vísceras, amplia essas entranhas a algo pulsante e vivo, é força vital e não porção morta do Ser. Esse é mais um dos antagonismos da obra de Fábio Magalhães. Afinal, são nesses pontos de tensão em que sua obra se sente confortável e onde prefere estar. Mais uma ironia: Como sentir conforto no ponto de tensão?
Quase todas as obras reproduzem cômodos do interior de uma casa, uma metáfora com as partes mais íntimas do Ser. Nossa casa é ponto central da existência, o nosso abrigo, nosso refúgio, e onde guardamos boa parte de nós. É o lugar de onde partimos e para onde regressamos. É uma metáfora da própria vida, onde nos reconectamos com nossas origens.
“Notas Sobre Ansiedade” nos levam aos momentos de crise vividos por descontrole de pensamentos repetidos. Dezenas de xícaras de café espalhadas em um cômodo, e mais uma vez entranhas repousam sobre uma poltrona antiga no canto de uma sala. O Ser encontra-se em looping, estratégias de contenção do fluxo de pensamento se esgotaram. Ele agora se encontra em total descontrole e os loopings se repetem em ritmo acelerado. Absorvido pelo transe o Ser está exausto.
Os assuntos que Fábio trata em suas obras se esbarram no senso comum da natureza humana, não se tratam de experiências vividas pelo artista. É algo mais amplo, são temas ligados à existência. Emoções vividas através de experiências distintas por cada indivíduo, mas o cerne é “humano”. Em a “Natureza Das Evidências/ Mãe Dos Fatos”, abaixo de um tapete e duas cadeiras, o sangue vaza, denuncia algo que tentou ficar encoberto, e agora vem sorrateiramente à tona. Situação que grande maioria das pessoas, inconsciente, mas também de forma consciente, vivencia ao longo da vida – essa sujeira representada pelo sangue vai ficando cada vez maior, chegando ao ponto que esta se acumule mais. A verdade não mais pode ser escondida.
A exceção é a obra “Ermo”. Único momento em que saímos de casa e agora nos deparamos ficticiamente num espaço público, possivelmente uma praça. Suspenso por longas correntes, um insignificante balanço de madeira paira no espaço vazio, contendo uma “pequena porção do indivíduo em forma de carne”. Essa situação que alude ao paradoxo de se sentir sozinho em meio a uma multidão, marcas da contemporaneidade nos grandes centros urbanos. O que fazer quando a presença do outro não cessa a solidão? O que fazer em meio à multidão quando em profundo exílio? A ideia perturbadora de se ficar só, de se sentir só, invade e preenche o vazio.
Fábio transita por emoções complexas e profundas que fazem parte do cotidiano soturno da experiência humana – memórias, dores, frustrações, perdas, traumas e medos. Construindo narrativas ficcionais, sua obra materializa e tornam explícitas sensações e sentimentos socialmente encobertos, aqueles que frequentemente nos torna pequenos, vulneráveis e “humanos”. Com uma inquietude agonizante de um Ser que não se conforma com a escravidão das próprias emoções, Magalhães escancara e evidencia tais emoções através de uma estética dura, sádica e angustiante, como caminho da libertação. Aquele sentimento de que algo precisa ser vivido ao extremo, o chegar ao fundo do poço, para que possa retornar a luz e a clareza de consciência.
Num rasgo dos disfarces e aparências impostos pela sociedade atual em que parecer é mais importante do que ser, suas vísceras soam como um grito de socorro, um chamado para dentro, um convite para além da superfície. Num mundo de imagens tratadas, e de “stories” perfeitos, deflagra-se na sua obra a real natureza humana e as diversas camadas a serem reveladas.
Caminho sem volta.
Spectator or “Ex”pectator?
Thaís Darzé
Both of these words in the Portuguese title exist, but they have different meanings. The former refers to a person who passively watches, while the latter is used to mean someone who is waiting for something to happen. A recurring theme throughout Fábio Magalhães’ work is of contradiction and areas of tension. While I think that the title question cannot be answered, Fábio’s work is not actually about answers; it is more about finding further questions and concerns. Provocation pulses throughout his work, and it for the public to choose whether they want to be spectators or “ex”spectators. His work is founded on two triads. The first of these is technical and encompasses fiction, photography and painting. The fiction element is the simulation of an act that is then photographed, and this is then used as one of the reference points to achieving the painting. After the painting is complete, everything prior to it is discarded, and the painting is left as the sum of all three processes. The second triad is conceptual; it permeates the self, the body and the Being. By using one’s own image or viscera in a work, these representations of the self permeate and use the body as a tool to reach the darker layers of the Being. Our mental processes take place in a chain formation. This means that no single thought, memory or feeling can be formed in isolation. Although perhaps occluded, there are connections between our mental processes and those that come before. Fábio seeks to access these links. In his words, “there is a clarity in human consciousness. I turn my back on all of this and try to grope forwards into the darkness.
Everything I find along the way is the result of this work”. Fábio has his own unique imagistic vocabulary. Through a language of encrypted reverie and daydreams, his repertoire is composed of symbols that represent reality. The artist’s vocabulary appropriates “lucid dreams”, and takes one back to ordinary life rather than releasing one from it. In my numerous conversations with the artist, he has said repeatedly that his work is full of contradictions and that throughout his working process he has often asked: “Am I contradicting myself?” As the dichotomy between dream life and waking life seems insoluble, Fábio places his work in this space of latent contradiction, one that frees us from reality and allows us to take a leap of consciousness. In this exhibition “Espectador da Vida” [Life Spectator], the artist carefully creates a series of objects that reproduces seemingly timeless miniature rooms, spaces and residences. Through symbolic subliminal encrypted messages, the emotions of these environments are revealed and surge to the fore. It is just at this point of revelation, when something becomes visible, that one’s most intimate being loses control. Magalhães attempts to freeze a hermetically closed and separate reality in his objects, thereby creating an impassable chasm. Unlike his large-scale paintings, which require the public to distance themselves and take a step backwards to observe the arena, this series of objects beckons observers in to come closer. These miniatures invite one to look at every detail more closely, and even though there are traces of temporariness, there are also clearly defined spatial markers. In “A Poeira Amarela Que Pairou Sobre Àquelas Horas” [The Yellow Dust That Hovered Over Those Hours], we are faced with invasive truths that affect the environment and reveal realities that are so harsh they leave colour wherever they pass. Our human part that is represented by the viscera resists these harsh facts and chooses to remain in the part of the space that is still intact. By reducing the Being to mere residual viscera, the artist expands them into something pulsing and alive – a vital force rather than just a dead part of the Being. This is yet another of the contradictions in Fábio Mag – alhaes’ work. His work is at home at these points of tension, and these are where he is most comfortable. This is the irony: How can one feel comfortable at a point of tension? Almost all the works reproduce rooms in a house, which are metaphors for the most intimate parts of Being. Our homes are the focal points of our existence, our nests, our refuges; they are the places that represent us. They are where we leave from and are where we return to. They are a metaphor of life itself, places where we reconnect with our origins. “Notas Sobre Ansiedade” [Notes on Anxiety] takes us to crises that we have experienced through not being able to control repeated thoughts. Dozens of cups of coffee are set on a table, and viscera – yet again, lie on an old armchair in the corner of a room. The Being continues to loop round, while strategies to curb the flow of thought become exhausted. Everything is now in complete disarray, and the loops repeat at an in – creasing pace. Absorbed by the trance, the Being becomes exhausted. Fábio’s subjects challenge common sense and human nature; they are not about the artist’s own personal experiences. There is a wider issue at stake here as these issues relate to existence. These are emotions lived through individuals’ distinct experiences, but the core is “human”. In “Natureza Das Evidências/ Mãe Dos Fatos” [Nature Of Evidence/ Mother Of Facts], the blood leaking from under a rug and two chairs reveals something that has been tried to be hidden but that is now revealed. This is a situation that many people consciously and unconsciously experience throughout their lives – the dirt represented by the blood increases and accumulates ever more. The truth can no longer be hidden.
The exception is the work “Ermo” [Wilderness]. The only time where we leave home and come up against a fictional public space, possibly a square. Suspended from long chains, a light wooden swing hangs in the empty space with a “small part of the individual in the form of flesh.” This situation alludes to the paradox of feeling alone amongst a crowd, the signs of contemporaneity in large urban centres. What can one do when the presence of others does not halt one’s loneliness? What can one do in the middle of the crowd when one feels exiled? This unsettling idea of being alone and feeling alone, invades and fills the emptiness. Fábio moves through complex and deep emotions that are part of the everyday bleakness of human experience – memories, pain, frustrations, losses, traumas and fears. In building fictional narratives, his work ma – terialises and brings to light sensations and feelings that are commonly hidden and are prone to making us feel small, vulnerable and “human”. With the agonizing restlessness of Beings who are unable to conform to the slavery of their own emotions, Magalhães reveals and highlights these emotions via a hard-hitting, sadistic and distressing aesthetic that signals a path to liberation. It has the sense of something that needs to be lived to the extreme, the need to hit rock bottom in order to return to the light and the clarity of consciousness. By tearing up the disguises and appearances imposed by modern society – where appearance is more important than being, these viscera are a cry for help, a call to within, an invitation to look beyond the surface. In a world of manipulated images and perfect “stories”, his work sheds light on true human nature and on the numerous layers that are yet to be revealed.
There is no going back