Fábio Magalhães e o corpo da pintura:
Inicia-se o Hiper-Realismo Contemporâneo no Brasil (II)
Gustavot Diaz
O artista baiano Fábio Magalhães, aparentemente esquecido pela academia aqui no Sul, opera uma surpreendente relação entre o “discurso” da arte contemporânea e a prática tradicional da pintura.
Digo aqui no Sul porque já conquistou um lugar ao sol em importantes espaços institucionais no Sudeste e Brasil acima; por aqui, entretanto, seu nome é pouco, ou nunca citado. E menciono a relação com o discurso contemporâneo, pois para “defender” sua obra – coisa, aliás, dispensável – Fábio tem inteligência suficiente para fugir dos chavões conservadores que veem na “representação do belo” o objetivo final da arte. Tal argumento, (esse sim retrógrado e descontextualizado) vale dizer – defendido por Roger Scruton, Robert Florczak, Vladimir London e muitos e muitos outros, não é só vazio: perdeu sua validade há mais de um século… O correr do tempo revelou a falsidade de seus pressupostos.
Para aceitar o discurso do “Belo”, teríamos que começar abstraindo Grünewald, Cranach, Bosh, Caravaggio, Goya e boa parte dos modernistas pós-Cézanne da História da Arte. Esses artistas não possuem nada do “Belo” – nem mesmo o belo esperado pelo senso comum. A arte não “representa”; ela apresenta uma visão pessoal, subjetiva do artista sobre o objeto retratado. Os artistas sempre souberam muito bem disso. Não é concebível que os pintores neoclássicos – que Ingres, por exemplo, tenha compreendido suas pinturas como “representações” de mulheres reais – a própria ideia de “realismo” era completamente absurda, alheia à arte até o final do século XIX. Numa síntese mínima, poderíamos dizer que o Belo aparece na Filosofia já em Platão, enquanto “ideal de perfeição”; com Aristóteles o Belo passa a ser algo apreensível pelo artista; ao longo do século XVIII, as definições de Belo culminaram na busca pela reprodução das ideias puras – porém, desde Kant o Belo integra o âmbito da subjetividade, sendo válido à pessoa humana quando sua intuição gera prazer estético, satisfazendo assim sua necessidade de compreensão. Ainda que se deduza universalidade neste sentimento, o fato é que a partir do século XVIII a beleza deixa de ser intrínseca ao objeto, ao “modelo”: passa a ser propriedade da subjetividade com a qual este dialoga. Um conceito normativo de “beleza”, portanto, pertence irremediavelmente ao passado, e não tornará de lá.
Por essa razão as palavras de Fábio Magalhães para qualificar seu próprio trabalho são tão eficazes: o que boa parte da arte contemporânea fez (em especial a Arte Conceitual) foi encontrar na teoria um substitutivo à prática, indo “direto ao ponto”: ora, se após Duchamp o que realmente importa na arte é um contexto discursivo produzido sobre ela, então vamos direto à ele, sem a necessidade enfadonha e incômoda de passar anos aprendendo técnicas rigorosas – que no final igualariam os artistas. A questão é que, se de um lado os artistas se igualam nos acertos, por outro é através de seus erros que se fazem artistas. Onde um acerta tecnicamente, muitos acertam; onde ele erra – a forma como “erra”, é exclusivamente dele. Isso é o que caracteriza na prática o que se chama “estilo”.
Fábio Magalhães faz bem em lançar mão do arsenal teórico utilizado no jargão da arte contemporânea. Não se esquiva de responder aos argumentos desta apenas com a técnica, como muitos artistas. Fábio enfrenta as questões que a arte contemporânea coloca apropriando-se do próprio léxico da academia – um léxico normalmente utilizado como arma contra a categoria tradicional da pintura. Deste modo, Fábio opera uma grande síntese ao fazer-se um pintor engajado nas questões da contemporaneidade (questões que a Arte Conceitual normalmente reivindica para si). E como se não bastasse, Fábio é um pintor hiper-realista. Essa categoria é tão autoconsciente em seu trabalho enquanto forma expressiva, que ele mesmo expressamente não o reivindica, senão como médium artístico: contenta-se com o “realismo”. Como nos relatou ele, “Para que se tenha uma fruição melhor da obra, penso que é preciso levantar esse primeiro véu da técnica e descer mais fundo”. O que Fábio Magalhães realiza é a articulação dos métodos do “hiper-realismo” como estratégia de abordagem às suas profundas temáticas; não está, portanto submetido a esta categoria pictórica. Implicitamente em sua postura reside a percepção da dialética entre exercício artístico e instrumentos técnico-expressivos – a concepção de que o artista só se realiza nesta relação. Ou seja, necessita do referente da imagem apenas para chegar a um outro “real” – mais real que uma (mera) imagem: o real do conceito, o qual, enquanto pintura, só se realiza no discurso visual.
Temos defendido que um grande mo(vi)mento artístico da atualidade, quer se queira, quer não, é a retomada da figuração hiper-realista, em nível mundial. Embora a academia pareça não querer se dar conta, este movimento pouco ou nada tem a ver com o Hiper-realismo (também chamado Foto-realismo) da década de 60 nos EUA. A academia parece querer identificá-los, confundindo ambos na mesma reprovação… Esta “escola” da atualidade, embora bastante heterogênea, possui feições ainda não reconhecíveis de todo, uma vez que está em pleno curso; mas desde já expressa a precisa intuição de pintores que, situados na realidade contemporânea, abandonaram as paisagens, casarios, naturezas mortas e os nus femininos para entrarem de vez nas questões do século (que afinal são as suas próprias).
Fábio Magalhães é um destes. O depoimento que dá acerca de seu próprio processo de trabalho quase poderia servir textualmente para uma instalação, para uma vídeo-arte, uma performance ou em uma apresentação de catálogo de um desses artistas globais da arte contemporânea. Fábio efetiva o que a Arte Conceitual fez “na teoria”. Ele adjudica à pintura atual também a capacidade, senão a “função” mesmo, de dialogar com as contradições do real, especular de maneira sofisticada sobre nossa imanência e contingências, criticar e desconstruir nossas instituições, provocar, propor reflexões acerca de teorias, (pré)concepções, comportamentos, etc.
A contemporaneidade que costuma excluir a pintura alude constantemente ao “vazio”, às condições “limítrofes” – tanto de estados psíquicos, sócio-políticos, como das próprias categorias artísticas; às relações “precárias” (daí os “não-pintura”, “quase-desenho”, “quase-gravura”, “entre-isso-e-aquilo”, ausências, silêncios e vazios ad nauseam) – um misto de M. Heidegger, um tanto de G. Deleuze, de M. Blanchot, de J. Derrida e outro tanto de W. Iser… Esse “vazio” que permeia tudo em todos os lugares, mas que aparentemente só os artistas pós-modernos são capazes de ver e ouvir, foi captado com rara lucidez pelo pintor Fábio Magalhães sem, no entanto alienar o espaço da apreciação, sem destruir a ponte dialogal nesta operação. Sua obra garante a possibilidade de construção de significado pelo expectador (que assim coparticipa dela por meio de indícios, tornando-a “obra aberta”; propositiva).
Desde a Poética de Aristóteles (XXV, 1461b 11) a mimesis nunca foi relacionada à reprodução e cópia do real, mas um processo criativo de ideias, constitutivo de novas significações. O Hiper-realismo Contemporâneo tem como traço característico não ser realista. É o que diz Fábio; é o que nos diz também Rómulo Celdrán, por exemplo, e outros pintores hiper-realistas com quem temos contato. A imagem é produzida antes e depois – no sentido de que, desde a referência fotográfica (criada ou manipulada pelo artista) até sua leitura posterior (aberta à polissemia interpretativa), a intervenção autoral é constante, sendo um erro grosseiro confundir essa “escola” contemporânea com mero replicar mecânico de fotografias, ou como exibicionismo de virtuosidade técnica. Há algo no interior do próprio processo mimético que nos afasta disso (aprendemos com Erich Auerbach). De fato, o Hiper-realismo Contemporâneo se aproxima mais de um “Realismo fantástico”, que do Realismo histórico. Há nele uma tendência significativa de “adulteração” da imagem e “desordenação” do real.
Nas palavras de Fábio Magalhães:
“Eu gosto da pintura que ao primeiro olhar se parece com a foto, mas nos próximos segundos isso logo se desfaz, e a pintura se revela. Dessa maneira vou criando o contorno do real dentro da minha obra, como uma espécie de realidade paralela, essa zona de fronteira entre a Pintura e a Fotografia. Na minha pintura, a realidade é reinventada, manipulada; é uma realidade subvertida. (…) Eu não uso imagens preexistentes – eu crio imagens para que essa imagem se torne pintura”. [1]
O artista chama esse processo de “simulação do ato”. Sua obra, assim é uma grande ficção metalinguística, onde a simulação da “cena” se dá duplamente; onde o dispositivo que vertebra a experiência é o próprio questionamento sobre a “representação”. Ele afirma ainda que seu trabalho fala do “irreal, das coisas que não se veem”. A novidade em relação às categorias vigentes na contemporaneidade é a linguagem de que se utiliza: a Pintura – esta categoria surpreendentemente velha…
Talvez mesmo por conta dessa legítima apropriação dos “termos e condições” da academia, Fábio Magalhães já adentrou, com pintura em óleo sobre tela, no Rumos com curadoria do Agnaldo Farias (2011/2013); expôs na FUNARTE (Recife), no Salão de Abril de Fortaleza; no Salão Paranaense (Curitiba/PR); recebeu o Prêmio FUNARTE Arte Contemporânea/Sala Nordeste (2010); e acaba de ser indicado ao prêmio PIPA (2015).
Enfim a pintura vai aos poucos sendo novamente (re)conhecida no Brasil…