Além do visível, aquém do intangível

Alejandra Muñoz

 

O mundo, nossa percepção e a realidade são sempre mais complexos e intrincados do que parecem, sobretudo no campo das imagens e sua propensão a afinidades aleatórias, recorrências ocultas e ecos involuntários. A pintura de Fábio Magalhães se constitui nesse lugar inquietante entre o visível, reconhecível e familiar e o inefável e intangível.

Suas obras abordam temas autorreferenciais que associam metaforicamente imagens do próprio corpo, sentimentos, estados psíquicos e situações banais, buscando ressaltar condições inconcebíveis de serem retratadas senão por meio de artifícios e distorções da realidade. Seu processo técnico de concepção visual envolve recursos de performance, cenografia, fotografia e desenho. Mas é na pintura, na fartura das camadas e veladuras, onde emergem contornos de uma realidade instigante, às vezes hermética, mas sempre perturbadora. Em muitos casos, o trocadilho visual com alguns ditos populares oculta cargas subjetivas que vão além da aparência do objeto retratado.

Fábio Magalhães é coevo de uma jovem geração brasileira da pintura, vigorosa e visceral, que exprime uma capacidade do suporte além da sua materialidade fibrosa e que, em geral, concebe o próprio objeto artístico da pintura como realidade espacial incomensurável, por vezes uma pintura instalativa potente que repropõe o lugar onde se mostra. É uma geração de artistas que reposiciona a pintura figurativa, por vezes beirando a iconoclastia dos gêneros tradicionais do retrato, da natureza morta e da paisagem. Instrumentada pelo virtuosismo técnico, é uma pintura que desmonta o factual e o anedótico para revelar aspectos incômodos do cotidiano, tabus e universos psíquicos que, frequentemente, operam como um vórtice sobre o observador.

O processo e as imagens de Fábio Magalhães distendem a relação histórica do artista e seu modelo e, sincronicamente, transgridem o retrato como gênero pictórico. Enquanto o artista anula a presença física de um outro no ateliê para a construção do tema, introduz uma noção de alteridade dele próprio. A introspeção e intimidade profunda do artista consigo mesmo, num exercício performático para a definição da imagem, são a subversão do autorretrato tradicional. Uma pintura que tem um caráter quase adversativo, isto é, uma pintura que parece se opor a si mesma, num exercício de referências conjugadas no processo cujo resultado é uma pintura que vai além da imagem que contém e fica aquém da intangibilidade do gesto do pintor.

Carne e vísceras, pele e corpo, ser. A gramática básica daquilo que somos. Vida e morte: o denominador comum da existência humana. Esses são os elementos constitutivos das quatro séries que aqui se apresentam. O tempo linear comum, aquele regido pela circularidade das estações, das efemérides e das rotinas, é aniquilado. O instante de uma ação incerta, que parece congelado ante nossos olhos, se expande quase infinito na dimensão sem horizonte do branco imaculado da tela. Fábio Magalhães se aproxima de uma temporalidade perpetua onde não há lugar para o circunstancial, para a omnipresença cotidiana das coisas esquecíveis. Constrói uma presença reticente do essencial invisível.

Beyond the visible, before the intangible.

Alejandra Muñoz

 

The world, our perception and reality are always more complex and puzzling than they seem, especially in the field of images and their tendency to random affinities, hidden recurrences and involuntary echoes. Fabio Magalhaes’s paintings are constituted in this unsettling place between the visible, the recognizable and familiar, and the ineffable and intangible.

His works approach self-referential themes that metaphorically associate subjects images of his own body, feelings, mental states and banal situations, seeking to emphasize conditions that are inconceivable of being portrayed but through trickery and distortions of reality. His technical process of visual conception involves means of performance, scenography, photography and drawing. But it is through painting, on the plenty of layers and glazes, where contours of an exciting reality emerge, sometimes hermetic, but always disturbing. In many cases, the visual pun on some popular sayings hides subjective charges that go beyond the appearance of the depicted object.

Fabio Magalhaes is coeval of a young Brazilian painting generation, vigorous and visceral, which expresses a support capacity beyond its fibrous materiality and which, in general, conceives the artistic object itself as an immeasurable spatial reality, sometimes a potent installative painting than re-proposes the place where it is shown. It is a generation of artists that repositions the figurative painting, sometimes bordering iconoclasm of traditional genres of portrait, still life and landscape. Instrumented by technical virtuosity, it is a painting that dismantles the factual and anecdotal to reveal uncomfortable aspects of daily life, taboos and mental universes that often operate as a vortex on the observer.

Fábio Magalhães process and images distend the historical relationship of the artist and his model and, in a synchronic way, transgress portrait as a pictorial genre. While the artist cancels the physical presence of the other in the studio in order to build the theme, he introduces the notion of his own otherness. The introspection and deep intimacy of the artist with himself, in a performative exercise to define the image, are the subversion of traditional self-portrait. A painting has an almost adversarial character, meaning a painting that seems to oppose itself, in an exercise of combined references in the process whose result is a painting that goes beyond the image that it contains and falls short of the painter’s intangibility of the gesture.

Meat and guts, skin and body, being. The basic grammar of what we are. Life and death: the common denominator of human existence. These are the constituent elements of four series presented here. The common linear time, one governed by the circularity of the seasons, the ephemeris and routines, is annihilated. The moment of an uncertain action, which seems frozen before our eyes, expands almost infinite in the dimension with no horizon of the immaculate white of the canvas. Fabio Magalhaes approaches a perpetual temporality where there is no place to the circumstantial, to everyday pervasiveness of forgettable things. He builds a reticent presence of the essential invisible.