Carne / Corpo
Gabriela Motta
As obras de Fábio Magalhães surpreendem. São grandes telas, límpidas, em que se vêem vísceras reluzentes. Estas porções de carne (humana?) aparecem ora asseadamente suspensas em sacos ou cordas, ora costuradas ou tensionadas e estendidas em superfícies também assépticas. Não são restos, não estão em ambientes fétidos, não parecem podres ou descartadas. Ao contrário, elas apresentam-se com elegância e altivez, o que colabora para a construção de uma atmosfera austera, quando poderia se esperar um clima mais mórbido dada a natureza das imagens. Todas elas fazem parte da série Retratos Íntimos, que o artista desenvolve desde 2011. De fato, estas telas apresentam um enquadramento que alude ao formato retrato, o que lhes dá humanidade. Além, é claro, de sermos feitos daquela mesma matéria.
Ao articular estes três aspectos – asseio da imagem, enquadramento e retidão – o artista enfrenta o problema da pintura que ele se propôs a realizar: óleo sobre tela em um registro bastante realista de um motivo quase abstrato (carnes e vísceras). Todas estas escolhas nos dizem muito sobre o fazer artístico. Se a opção por trabalhar com pintura a óleo nos indica a habilidade e o deleite que envolvem a realização dessas telas, é preciso refletir sobre o que o enquadramento e o realismo dessas imagens nos trazem. De fato, para chegar a essas imagens o artista cria em seu ateliê, com vísceras de animais, as cenas que vemos, fotografando-as, para finalmente transportá-las para a tela. Nesse processo, o retrato fica mais evidente. Mas também evidencia-se a obstinação de um olhar que busca a precisão, os múltiplos tons de vermelhos, as dobras da carne que se fundem em massa e o volume do ar. Um olho que não cansa de mirar o avesso de sua própria imagem.
Quem lança mão de um suporte tão tradicional está sempre sendo rondado pelo risco de o apuro técnico sobrepujar-se sobre as qualidades subjetivas da pintura. No caso de Fábio, o artista engendra uma experiência sensorial em que técnica e poética são complementares. É impossível não se surpreender com o rigor da pintura, é impossível não reagir com o coração. O nosso olho pulsa diante desse sujeito-carne: dilatação e contração, (sístole e diástole), são os movimentos provocados pela força dessas imagens que nos assaltam.
Carne / Corpo
Gabriela Motta
Fábio Magalhães’s work surprises us, with its large, clean canvases displaying vivid innards. These pieces of (human?) flesh are sometimes hung up hygienically in bags or with string, or else sewn or stretched across equally sterile surfaces. These are not remains, they are not in putrid environments, nor do they seem to be rotten or discarded. They actually have an elegant dignity which helps create an atmosphere of austerity where one might expect something more morbid, given the nature of the images. These works are all from Magalhães’s Intimate Portraits series, started in 2011. In fact, the canvases are framed in such a way as to allude to the portrait format, giving them a sense of humanness. Apart from the fact that they are actually made of the same matter.
By combining these three elements – clean image, framing and poise – the artist addresses the issue of the kind of painting he chooses to do: oil on canvas with a very realistic register of an almost abstract motif (flesh and innards). All these choices tell us a good deal about the artist act. If the option of working with oils indicates the skill and enjoyment involved in producing these paintings, we must still reflect upon what the images’ framing and realism tell us. To make them, the artist first creates the scenes we see in his studio using animal guts, which he photographs before finally transposing them onto the canvas. In this process the portrait is brought into evidence. But also the determination to aspire for visual precision, the many hues of red, the folds of flesh that meld together in a mass, and the volume of the air. This is an artist that does not tire of observing the hidden side of his own image.
Those who use such a traditional support always run the risk of having technique override the subjective qualities of the painting. In Magalhães’s case, he conjures up a sensory experience where technique and poetry complement one another. It is impossible not to be surprised at the rigor of the painting, not to react with the heart. Our vision pulsates before this flesh- subject: dilation and contraction (systole and diastole) are the movements triggered by the power of these images that assail us.