De quem é esse corpo?
Celeste Wanner
No alvorecer do século XXI, vislumbramos um desejo por parte dos artistas em busca de suportes sensíveis para representar uma das mais avassaladoras das obsessões: o corpo! Meu corpo, o do outro, o corpo imaginado e desejado, o corpo consumido e o corpo que consome. Sensações, imaginação e ação constituindo e definindo o sujeito nas suas mais extensas e intensas relações com o mundo, processo contínuo de elaboração do que antes era a verdade do corpus, hoje, é a sua desconstrução.
O artista é levado pelo impulso de transformar a memória do corpo em práticas visuais das mais plurais, em associações e relações – temporais e espaciais –,com a sua própria identidade, buscando refletir sobre seus limites: angústia, dor, solidão, vida, morte, permissão e transformação.
O trabalho de Fábio Magalhães constrói-se através de um processo que envolve o seu próprio corpo, fotografado em performances silenciosas, até chegar à pintura. Trata-se de um trabalho cíclico, que envolve etapas bem definidas por ele – performance, fotografia e pintura –, mas que nem sempre trilham o mesmo caminho. São cruzamentos perseguidos pelo artista, para poder entender e se fazer entendido, sentir e ser sentido, em espaços e tempos, aqui e além, frente à fragilidade do estar-no-mundo. Assim, no espaço pictórico, Fábio Magalhães imprime cargas subjetivas e simbólicas, buscando refletir sua condição enquanto ser… “Embora minha obra tenha esse caráter intimista, na teatralidade de uma realidade particular, na minha atuação, minha narrativa é aberta… ela toca o senso comum: são sentimentos, momentos e emoções humanas de qualquer pessoa…
Se tudo isso cabe em uma só obra, de fato, a pintura de Fábio Magalhães nos instiga, pois propõe um jogo semiótico entre o real e a sua representação.
Se o corpo foi aberto a discussões das mais calorosas, no final do século XX, Foucault, um dos teóricos que mais contribuiu para novas concepções sobre o tema, traz à tona belas passagens da relação de Baudelaire com o seu próprio tempo. Um período caracterizado pela descontinuidade: uma pausa na tradição, um sentimento de novidade e de vertigem diante do momento que, no entanto, passa, como um ligeiro passatempo. Um pensamento que se instaura nesse próprio tempo, enquanto passagem, não indo além do instante presente, do efêmero, do fugaz e do contingente.
A modernidade baudelaireana é um exercício de atenção extrema ao que é real, àquilo que reside apenas dentro do homem, não sendo, assim, determinado pelo que lhe é externo. O ser se reconhece através de seu próprio corpo, de seu comportamento, sentimentos e paixões, buscando inventar-se a cada instante. Porém, aos olhos de Baudelaire, esse reconhecimento só poderá se produzir no outro, e somente naquele lugar diverso em que se constitui a Arte.
A contemporaneidade não nos oferece um novo corpo a ser habitado, mas um corpo que passa a ser visto e entendido como processo histórico, um corpo que não se resume a uma simples massa, pois é atemporal, indissociável do humano em eterna construção. A ocultação do corpo tem estreita relação com modelos impostos pelas culturas, sobretudo as ocidentais, que privilegiavam o silêncio e a confissão, atitudes bem caracterizadas por Foucault. Assim, falar do corpo era um sacrilégio, sobretudo quando se tratava de confessar o desejo, a sexualidade, e sentimentos não convencionais.
Através de sua anatomia, esse corpo lacrado, sagrado, ocultado, já era suficiente para determinar cada tipo de sujeito, e nada mais. Suas dimensões psicológica e erógena – ambas vinculadas ao prazer e ao desejo –, trazem uma nova carga semiótica, de recente descoberta nas pesquisas sobre o corpo.
Em tempos de desmantelamento dos códigos tradicionais, o corpo tenso acompanha pari passu as mais novas invenções tecnológicas da era digital, e –nessa corrida desenfreada – se vislumbra uma significativa mudança nas relações humanas: o corpo se torna denso. Um novo corpo, cerrado, compacto, mas extenso, ampliado. As mais diversas modificações acompanham esse corpo, em fobias, ansiedades, stress e comportamentos que evidenciam um corpo em câmbio, vinculado à cultura do consumo, do descartável, que faz do humano o corpo-objeto, o corpo-mercadoria.
Quiçá, através da arte, esse corpo possa ser revisto em seus mais diversos matizes, aqueles que tanto encantaram e continuam inspirando artistas por toda a história do homem e da arte, pois afinal, perguntamos: de quem é esse corpo? O corpo do artista, de um modelo ou o meu próprio corpo refletido nessa imagem?
Neste momento, todas as questões se colocam em suspenso, são puras possibilidades, pois o corpo continua sendo um ente complexo, onde as inflexões da história confluem para dar renovados sentidos à vida, mas à vida de um corpus.
Whose body is this?
Celeste Wanner