Imagens inauditas nos retratos íntimos de Fábio Magalhães
Prof.Dr. Eriel Araujo
Atualmente, a produção artística esbarra numa confluência de procedimentos que aproxima vários modus operandi em favor de uma ideia, criando estratégias capazes de gerar imagens que tentam revelar as interpretações dos artistas e das múltiplas leituras possíveis, onde as qualidades visuais são reinterpretadas e resignificadas por cada indivíduo. Com isso, muitas técnicas artísticas corroboram na construção dessas obras, contribuindo para reflexões sobre o comportamento humano e suas ambições em compreender os fenômenos físicos e sociais, assim também seu próprio Eu.
O corpo aparece quase sempre como um representante do Ser e de sua condição social; contudo, sua imagem esconde outras imagens, aquelas produzidas pelas sensações ou mesmo pelos devaneios. Seja numa imagem abstrata ou figurativa seja numa ideia sobre o corpo, suas condições físicas, psíquicas e correlações com outros semelhantes se articulam e podem gerar infinitos signos do mesmo. Assim, podemos ver as “guerras” existentes entre o corpo e o tempo, o corpo e os lugares, o corpo e os outros corpos; contudo, existem outras “guerras” que enfrentamos, aquelas introjetadas nos sistemas internos desses corpos.
As questões políticas nascem de um corpo repleto de ideais e choques com o externo. Pensando assim, encontramos nas produções artísticas embates que guiam a humanidade em direção ao desconhecido. Um caminho ao devir, mas que também segue representando pequenos gestos necessários à vida, surpreendendo a história e o próprio indivíduo.
Na produção artística contemporânea verificamos que algumas pinturas ressaltam alguns estados do Ser e sua condição enquanto indivíduo. Uma necessidade que concorre para a produção de pensamentos. Trata de uma superfície colorida, como diz Didi-Huberman, um colorido-sintoma.
Um colorido por meio do qual a pintura imagina-se como dotada de sintoma, isto é, dotada das capacidades de epiphasis e de aphanisis, que se reconhecem em um corpo quando é habitado, atravessado, assombrado pelos tormentos, pelos reviramentos do humor. É um colorido por meio do qual a pintura pode se imaginar como corpo e como sujeito; colorido da vicissitude e, portanto, do despertar do desejo. (HUBERMAN, 2012, p.36)
Na história da pintura, contudo, verificamos seu sofrimento junto àqueles responsáveis por sua existência, permanência agonizante, sua morte e ressurreição; mantendo ciclos de resignação e transformações frente aos desafios da sobrevivência da espécie humana e de seus feitos. Com isso, nos deparamos com imagens criadas para revelar o que vemos e o que pensamos, mas a todo instante somos surpreendidos com a mesma imagem, a imagem do corpo.
Na obra desenvolvida por Fábio Magalhães encontramos imagens de um corpo sem ordem, imagens de órgãos que as vezes reclamam o avesso daquilo que representam, e finda um discurso quase incompreendido. Suas escolhas passam por critérios estabelecidos nos procedimentos que se superpõe até atingir um “
do corpo.ee, portanto, do despresenta’ se superpoe so urpreendidos com a mesma imagem, a imagem do corpo.ee, portanto, do desp”””’’estado ideal” de apresentação, numa imagem pintada.
A composição de suas telas estabelece relações com a imagem do seu próprio corpo, vísceras de animais e elementos que figuram estados de suspensão e tensão da carne-imagem. Uma espécie de simulação de devaneios, conseguida pelo ato fotográfico de encenações e transformadas em imagens pictóricas.
Escolho a série “retratos íntimos”, desenvolvida por Fábio Magalhães, para discutir a importância dos procedimentos híbridos na produção artística contemporânea, encerrada numa pintura de qualidade artística surpreendente. Nessa série, ele explora valores inerentes ao estado do Ser, apresentadas em imagens de fragmentos de um corpo e seus fluidos em estado de tensão.
Fábio Magalhães (1982, Tanque Novo – Bahia – Brasil) é um artista que encontrou na pintura o lugar onde “tudo” é possível. Desde sua infância e adolescência esteve ávido por conhecer o que é arte; assim, passou parte desse período investigando nos livros de história da arte como os artistas do passado construíam suas ideias visuais. Quando chegou o momento para decidir sobre sua profissão, não teve dúvidas, resolveu prestar vestibular para a Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. No entanto, já possuía resultados alcançados de experiencias autodidatas, numa busca incansável pelo fazer arte.
A Série “retratos íntimos” marca o início de sua projeção nacional como artística, reconhecido pelo sistema da arte brasileira. Após ser selecionado pelo projeto “Rumos”, mantido pelo Itaú Cultural, passou a fazer parte da Galeria Laura Marsiaj e ser convidado para várias exposições importantes. Vale ressaltar que, antes desta, sua carreira ganhava destaque em salões e bienais, obtendo reconhecimento de críticos e especialistas em arte.
Anteriormente ao trabalho que vem desenvolvendo, Fábio produziu imagens a partir de experiencias associadas ao uso de procedimentos não convencionais, como por exemplo, imagens construídas com agulhas e alfinetes. Porém, foi na pintura óleo sobre tela que ele vem encontrando respostas a muitas das suas inquietações.
Antes de realizar um trabalho, Fábio passa boa parte do tempo elaborando suas ideias e estratégias para construção de uma cena a ser fotografada, a qual será usada como referência para a pintura. Assim, ele se aproxima da performance, instalações e fotografia, combinando qualidades visuais a serem exploradas na sua pintura. Todas as etapas são meticulosamente pensadas até obter imagens que, por fim, são tratadas num banco de dados digital. A seguir, vários artifícios são usados para simular situações presentes em mais de uma imagem, condensadas em camadas de cor até um limite preciso, determinado pelo seu olhar.
Na série “o grande corpo”, Fábio nos apresenta detalhes de um corpo, imagens do seu próprio corpo. Nestes trabalhos, vemos a imagem de um corpo sob uma espécie de membrana transparente, podendo ser a representação de um plástico ou mesmo de uma membrana qualquer, que podemos imaginar ser uma proteção ou violência ao acesso do Eu.
Muitas são as possibilidades interpretativas de sua obra; contudo, sabemos que trata do humano. Pensar o humano é talvez uma das tarefas mais árduas, pois é necessário invadir um espaço protegido pela couraça do Ser e das construções sociais. A pintura de Fábio parece dissolver essa couraça e revelar caminhos para outros entendimentos de Ser.
Ao entrar em contato com a obra de Fábio Magalhães, muitos ficam encantados com a técnica desenvolvida por ele. Porém, esses valores parecem extrapolar o que conhecemos como qualidade técnica, são outras qualidades que estão em cena. A espera de um olhar atento.
Cenas são vivenciadas a cada instante de nossas vidas. Quantas são analisadas por nós? Nossa memória encerra uma verdadeira biblioteca de imagens; contudo, é preciso exercitar o olhar e ver o que existe além das imagens, uma potência de pura Figura (Deleuze, 2007). Quando um artista estabelece um diagrama para desenvolver seu trabalho, ele espera que algo aconteça e que surja o imponderável.
Nas séries “o grande corpo”, “retratos íntimos” e “fronteiras do devoluto” podemos perceber que o conjunto de sua obra estabelece uma relação entre o figurativo e o abstrato, pois a pintura cria uma espacialidade capaz de nos conduzir por lugares desconhecidos, sem contudo, desvincular das referencias originais de uma imagem conhecida. Um exercício à visão háptica.
Em sua poiética, Fábio reúne múltiplas ações até alcançar seus objetivos. Assim, haverá uma “… injeção contínua do diagrama manual no conjunto visual, “gota a gota”, “coagulação”, “evolução”, como se passássemos gradualmente da mão ao olho háptico, do diagrama manual à visão háptica”. (Deleuze, 2007: p.160) Para ele, isso é possível por meio de uma pintura carregada de realismo visual e qualidades pictóricas, definidas pelas camadas de tintas depositadas sobre uma superfície plana.
É importante destacar que sua pintura resulta de sobreposições técnicas e conceituais, articulando imagens com pulsões do real. Assim, ele arrasta para a superfície da tela, camadas de experiências vividas e imaginadas. Em sua série “Retratos íntimos”, por exemplo, existem imagens que induz a uma interpretação imediata do óbvio; contudo, podemos identificar algumas estratégias de apresentação das cenas e elementos simbólicos que concorrem para leituras de caráter obtuso. Com isso, o que vemos na superfície de suas telas são indícios de uma linguagem visual passível de muitas interpretações.
Na tela “sem título” (figura 1) da série “retratos íntimos” vemos a imagem de uma língua presa por fios numa superfície. A aparência contorcida da imagem da língua parece sugerir uma fala impedida, algo que se fixa na superfície da pintura para dar voz ao inaudito.
Figura 1. Sem título (série retratos íntimos), de Fábio Magalhães, Óleo sobre tela, 190 x 140 cm (2012).
Nos exemplos a seguir, figuras 2 e 3, verificamos uma interpretação singular do “coração”. Na primeira tela, percebemos a imagem de vísceras ensacadas e suspensas por um barbante, na segunda uma pequena quantidade de sangue ensacado com ar, também suspensa por um barbante. Estas imagens possuem cargas simbólicas que escapam o entendimento lógico, pois suspender matérias num espaço vazio induz a várias discussões sobre o estado das coisas.
Na primeira imagem, Fábio recolhe vísceras de um animal abatido para o consumo humano, constrói uma forma com elas dentro de um saco plástico, e apresenta numa pintura com fundo “branco”; enquanto na outra, a imagem do sangue presente na pintura tem referência a seu próprio sangue, coletado por um profissional da área da saúde. O animal, o humano e suas possíveis associações metafóricas e associativas apontam para um caminho tortuoso das múltiplas leituras dessas imagens.
Ao ser questionado sobre o significado atribuído a cada cena, ele revela uma pequena parte, deixando essas cenas em estado de significação, um signo em cor. Como escreveu Jorge Coli “É aqui, do artifício, que brota o mistério… A síntese da obra opera num real muito além do real, que se serve do ilusório…”. Uma tensão que provoca ideias, conceitos e mitos sobre a presença do homem no presente.
O uso de elementos que tencionam a “organicidade” de um material “quase morto”, pois está afastado do sistema orgânico que conduz à vida, mesmo que perene, propõe estabelecer vínculos com o extraordinário, com o incorpóreo (CAUQUELIN, 2008). A pintura torna visível os incorporais de um corpo, um corpo potente em imagens. Imagens inauditas.
Figura 4. Sem Título (Série Retratos Íntimos), de Fábio Magalhães, óleo sobre tela,100 x 130 cm, 2012.
Fábio Magalhães é um artista que vem desenvolvendo uma obra centrada no estudo pessoal sobre o humano, a realidade contemporânea e possíveis concordâncias históricas; para tanto, ele pinta a partir de cenas construídas por ações executadas por ele mesmo, numa tentativa de tornar visível seus devaneios. Uma imagem resultante de imagens.
Nos diálogos com Fábio, percebo que sua trajetória artística corrompe o tempo e comprime imagens nas superfícies das telas. Lugar que o mesmo escolheu para atuar, como ele mesmo afirma, como um operário da Arte. Sua dedicação diária à pintura revelam reflexões pessoais sobre a arte e a atualidade, atravessadas por estudos da cor e conceitos pertinentes aos temas envolvidos nas cenas, construídas por metafóricas e associações. Estas estabelecem aproximações com temas mitológicos, com o Eu, condições sociais, políticas, religiosas e até mesmo aquelas inauditas.
Na fronteira do que é visto existem muitas imagens.
Artigo publicado na revista científica Croma 6 em Portugal.